Globalização como guerra não declarada contra todos e contra a natureza, Privatização como arma letal de apropriação do bem comum, repressão de protestos como forma de se destruir a democracia, Estados como empresas executoras do poder real desmantelador

Vandana Shiva falou de guerras, armas, seres humanos e paz, em entrevista a Ernesto Celestini no Fórum “Propostas de Paz – Justiça e Paz em tempos de crise”, de 8-10 de junho em Roma
Fonte: Peacelink.it de 10 de junho de 2012
Tradução: Mario S. Mieli



Durante os três dias de Fórum, no qual se reuniram os representantes de pelo menos 120 associações para discutir aspectos e causas da crise que vivemos nestes tempos, houve intervenções da parte dos organizadores e de hóspedes previstos e imprevistos. As conclusões e as propostas do Fórum ainda não tinham sido apresentadas quando, com palavras simples e claras, Vandana Shiva, em meia hora, conseguiu envolver todos os presentes no seu raciocínio que expressou, desenvolveu e sintetizou o tema do Fórum.

Foi feita uma pergunta a Vandana Shiva: “Como se constrói a paz?”


Precisamos começar com as nossas mentes – começou Vandana Shiva – e esquecer aqueles paradigmas de guerra que nos ensinaram, desde crianças, e que colocam todos em concorrência, os uns contra os outros e contra cada coisa. A cultura atual ensinou ao homem que precisa estar sempre pronto para se defender a qualquer momento e, sobretudo, em tempos de crise.

Essa atitude de prevenção e defesa é sintoma de uma violência latente que pode emergir nos modos e nos lugares mais imprevisíveis. Por exemplo, no meu país, a Índia, trabalhou-se muitíssimo durante pelo menos 10 anos para desenvolver a agricultura com novas tecnologias para consentir uma produção mais abundante, um melhor nível de vida para os produtores e colheitas mais abundantes para placar a fome da população.

Essas novas tecnologias, e o modo como foram introduzidas, produziram desequilíbrios sociais e protestos que desembocaram em reações locais e, numa escalada da violência, determinaram o homicídio de Indira Gandhi. Assim, de um processo posto em prática com bons propósitos de crescimento e de paz, nasceu um processo de violência.

Começou com a introdução dos pesticidas na agricultura, com os OGMs, com as reações de quem não aceitava mudar os próprios hábitos e com as pressões dos grupos econômicos que, ao contrário, queriam impor seus produtos. Começou um processo que queria, essencialmente, levar o bem-estar a populações condenadas a sofrer pela fome e pelas inconveniências desde sempre, mas que conseguiu escapar do controle e se tornou uma arma que levou à morte. Morte por envenenamento dos alimentos pulverizados com inseticidas, morte pelos inumeráveis suicídios de cultivadores que viram suas terras se tornarem improdutivas, e que se mataram por causa das muitas dívidas que nunca teriam podido pagar. São todas atividades que ocorrem nos campos mais disparates da produção e que não podem ser definidas verdadeiras armas de guerra, mas que, realmente, com toda a sua força de destruição de massa, podem criar danos bem mais graves e incontroláveis que uma guerra declarada.

A agricultura, que deveria ser um elemento propiciador de bem-estar, agora está sujeita não só às intempéries climáticas mas sobretudo às restrições impostas pelas multinacionais que regulam os preços, pelas leis que incentivam ou desincentivam as produções, pela criminalidade mafiosa que trata da escolha dos cultivos e se transformou numa arma de guerra, tanto que, no mundo há pelo menos 2 bilhões de pessoas que sofrem de fome ou se alimentam de “junk food”.

Um conflito local menor frequentemente é tomado como pretexto para ser transformado em conflito nacional, social, religioso, racial ou é instrumentalizado para contrastar a imigração.

A primavera árabe começou casualmente com a retirada da permissão de vendedor de um ambulante tunisino e, desse pequeno incidente, teve começo uma revolução, que já estava no ar, mas que precisava de um pretexto para começar. No Egito, tudo começou devido ao aumento do preço do arroz. O preço do arroz e do pão causaram um efeito dominó que produziu o aumento do preço de todos os produtos alimentares, dos transportes, das casas, etc…

Também na Síria, tudo começou com o protesto dos agricultores que tinham sofrido danos devido às mudanças climáticas. Os pobres camponeses, que são o elo mais fraco da cadeia econômica, e os mais vulneráveis no caso de calamidades de qualquer tipo, como o clima, são aqueles que sofrem sempre mais. Portanto – diz Vandana Shiva – num certo sentido, a rebelião, degenerada até a guerra civil, com milhares de mortos, foi desencadeada por “culpa do mau tempo”.

A globalização posta em prática sem qualquer controle, não trouxe a ninguém os benefícios prometidos, mas acabou sendo o fator determinante de todas as crises que são mais catastróficas que as guerras declaradas.

Voltando ao meu país, a Índia – prosseguiu Vandana Shiva – o crescimento do PIB é de 9%, de modo que lendo os dados, pareceria um país em expansão onde o bem-estar é acessível, pareceria que as coisas estão indo bem para todos, mas nunca se olha ou nunca se conta como vivem as pessoas comuns. Por exemplo, nos últimos anos houve 250.000 suicídios ( http://wownews.co.uk/news/638-250000-farmers-commit-suicide-in-india-largest-wave-of-suicides-in-history.html ) entre os agricultores que não conseguiam mais colher de seus campos o necessário para sustentar a si mesmos e as suas famílias.

Por exemplo, passa quase despercebido que uma em cada duas crianças não é alimentada devidamente para desenvolver completamente o próprio corpo e o próprio cérebro: é a desnutrição. O primeiro passo para criar pobreza e enfermidade, que suspende a educação e torna o homem escravo de quem tem mais e que, por isso, pode explorar o próximo.

É preciso então fazer uma outra pergunta: mas é assim tão importante o consumismo?

Todos os alimentos que comemos e que compramos em um supermercado precisam ser empacotados, recobertos de uma película transparente ou de alumínio e, com frequência, vendidos num contêiner de cartão ou poliestireno. Tudo isso requer trabalho e utilização de recursos da terra como petróleo, bauxita, carvão e árvores. Todo esse trabalho e esse desperdício de recursos naturais continua violando e destruindo, sem uma real necessidade, todos os recursos do planeta.


E depois é natural e espontâneo que haja manifestações de protesto que nos peçam para refletir sobre a real utilidade de certas leis que autorizam o uso, aliás, o abuso indiscriminado dos recursos naturais. Mas justamente esses protestos constituem um pretexto para que se destrua a democracia também, porque, como vimos em muitos países contra os protestos de gente que tenta defender seus direitos, os governos enviam tropas e aplicam leis especiais, antiterrorismo.

Houve e continua havendo uma utilização imprópria do termo “Green Economy” (Economia Verde), onde vira verde tudo aquilo que não serve mais à economia, aquilo que destrói a economia, como estão comunicando os veículos da mídia quando entram no tema da relação do homem com a ecologia, como procurarão impor também na próxima conferência Rio+20, onde se tentará novamente fazer acreditar que a privatização de todos os recursos ambientais, inclusive a água, as árvores e a possibilidade de respirar ar puro é a única via para proteger de verdade a natureza.


É essa a verdadeira guerra de hoje, é a guerra contra as pessoas, contra o planeta. Depois de séculos de lutas, os movimentos democráticos tinham conseguido manter separados o poder econômico daquele político, mas esse longo processo foi anulado e destruído pela globalização e assim, os Estados se tornaram empresas, corporações.

Em seguida, Vandana Shiva abaixa a voz e quase com vergonha, faz referência ao governo italiano que, como em outros países, precisa balançar as contas, sem se preocupar de como vivem os seus cidadãos, como uma empresa qualquer, sem poder levar em conta que as finalidades de um Estado não são as mesmas daquelas de um empreendimento comercial.

Se não forem executadas drásticas mudanças de rota, impostos pelos protestos populares ou por quem representa os verdadeiros interesses dos povos, quando terminará a emergência dessas crise, o modelo econômico terá mudado e evoluído tanto que parecerá espontânea a transformação dos atuais Estados democráticos em novas formas de Estados militares que poderão agir legalmente contra as minorias que tentarão se opor às escolhas dos governos-empresas e ninguém poderá se rebelar contra a reduzida liberdade dos cidadãos, como previsto pelas leis aprovadas pelo governo com o objetivo de prender quem quer que seja que crie obstáculos aos lucros das grandes organizações multinacionais.

Um dos sistemas que poderiam tornar o ser humano menos dependente desses sistema cada vez mais coercitivos que os governos precisam impor, a fim de executar as tarefas designadas pelos verdadeiros detentores do poder (econômico-financeiro) é aquele de reaproximar o homem à terra, voltando a estreitar aquele vínculo que no passado o mantinha unido às suas raízes, e que lhe permitiu obter diretamente os alimentos para seu sustento, ficar ligado ao próprio território e aos seus próprios semelhantes, com quem constituiu a sociedade.

É isso que acho poderá construir a paz – e Vandana Shiva termina a conferência – com a defesa dos bens comuns e das comunidades locais, orientando-nos no sentido de uma paz que esteja dentro de nós e que seja recíproca não só para com o próximo, mas também para com a natureza.

Nesses tempos de crise “global”, temos uma grande oportunidade para planejar um futuro diferente, sem desperdício, com mais respeito e com uma nova esperança.
Não podemos perder este trem.

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>> ECOGUERREIROS, LEVANTEM-SE! por VANDANA SHIVA – CHAMADA GLOBAL PARA A RIO+20 – A NECESSIDADE DE MUDANÇA DE PARADIGMA

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